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Convênio retoma cobrança do ICMS sobre softwares

  • João Gabriel Casemiro Águila
  • 9 de out. de 2017
  • 10 min de leitura

Atualizado: 15 de abr. de 2020


Imagem: Tributação de softwares.

Diante do atual cenário de grave crise política e econômica instaladas no país, os governos estaduais têm sofrido com a constante queda de arrecadação do ICMS. Nesse cenário, o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) tem buscado estabelecer novos horizontes de tributação ainda não explorados ou alcançados pelas Secretarias de Fazenda Públicas Estaduais.

Com edição do Convênio ICMS nº 106/2017, publicado nesta quinta-feira (5) no Diário Oficial, o setor de tecnologia enfrentará nos próximos anos grandes desafios e disputas fiscais, em todo o território nacional. Referido convênio autoriza os Estados e DF a legislarem sobre a incidência do ICMS nas operações com softwares. A edição da referida norma confirma a movimentação do CONFAZ nos últimos anos para estabelecer o setor de tecnologia no Brasil como o grande alvo das Fazendas Públicas Estaduais.

Nesse sentido, o Convênio ICMS nº 106/2017 possibilita, a partir de 1º de abril de 2018, a tributação das operações com softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, que sejam padronizados, ainda que tenham sido ou possam ser adaptados, comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados (download ou streaming).

As principais determinações estabelecidas pela norma são:

I. As empresas que comercializarem o software via download ou streaming deverão ter inscrição estadual em cada Estado para onde vender o produto, a não ser que seja dispensada da obrigação (Cláusula Quarta);

II. Arrecadação do ICMS será destinada ao Estado no qual estiver localizado o consumidor final (Cláusula Terceira);

III. Isenção do ICMS para as operações anteriores à venda a este mesmo consumidor final (Cláusula Segunda);

IV. O recolhimento do tributo será mediante Guia Nacional de Recolhimento de Tributos Estaduais – GNRE ou documento estadual previsto na legislação da respectiva unidade (§ 2º da Cláusula Quarta); e

V. Os Estados poderão eleger terceiros como responsáveis pelo recolhimento do ICMS, (ex.: consumidor do software, administradoras cartão de débito e crédito ou outro intermediador financeiro), sendo tal situação também aplicável para operações internacionais (Cláusula Quinta).

Diante das disposições mencionadas acima, nota-se que o Convênio nº 106/2017 estabelece as seguintes hipóteses para o ICMS sobre softwares: (i) na hipótese de saídas internas, a pessoa jurídica detentora do sítio eletrônico ou plataforma virtual deverá se inscrever em todas os estados nos quais realize operações de saída dos bens e emitir a respectiva nota fiscal; e (ii) nas operações realizadas fora do país, será eleito um responsável pelo recolhimento do imposto.

Com efeito, não é a primeira vez que o CONFAZ trata sobre a incidência do ICMS sobre softwares. Em 2015, foi editado o Convênio ICMS nº 181, por meio do qual o CONFAZ autorizou diversas Unidades da Federação[1] a conceder redução de base de cálculo do ICMS que corresponda ao percentual de no mínimo 5% (cinco por cento) do valor da operação que envolva softwares e congêneres, disponibilizados por qualquer meio, inclusive nas operações efetuadas por meio de transferência eletrônica de dados (download ou streaming)[2].

Em termos práticos, a partir do Convênio nº 181/2015, já era possível aos Estados e DF estabelecer a cobrança do ICMS sobre o valor total das operações com softwares, diferentemente do que vinha ocorrendo anteriormente na maior parte dos Estados, que apenas exigiam o ICMS sobre o valor das mídias físicas, não dos programas em si.

O Estado de São Paulo já havia se antecipado em relação ao CONFAZ com a edição do Decreto n. 61.522 em 29 de setembro de 2015, o qual afastou a incidência do ICMS apenas sobre o (dobro do) valor da mídia e passou a prever, a partir de 01/01/2016, o recolhimento do ICMS nas operações de vendas de softwares sobre o valor total da operação[3].

Contudo, após diversos questionamentos pelos contribuintes a respeito da referida norma, em 11 de janeiro de 2016, foi publicado o Decreto Estadual (SP) n. 61.791/2016, no qual (i) foi suspensa a cobrança de ICMS nas operações com softwares e congêneres, até que fosse definido o local de ocorrência do fato gerador do ICMS; e (ii) se incorporou à legislação paulista[4] a redução de base de cálculo prevista no Convênio ICMS n. 181/15, de modo a resultar em carga tributária equivalente a 5% do ICMS incidente na operação[5].

Com efeito, é evidente que o Estado de São Paulo esperava somente a publicação do Convênio ICMS nº 106/2017 para retomar a cobrança do ICMS sobre softwares via download e streaming. Porém, mesmo com a definição quanto ao local de ocorrência do fato gerador do tributo, as normas estaduais e do CONFAZ mencionadas acima possuem vícios de ordem legal e constitucional.

Primeiramente, há de se ressaltar a existência de vício formal constitucional das referidas normas, haja vista que somente Lei Complementar específica pode (i) solucionar o conflito de competência entre Estados e Municípios para cobrança do tributo; e (ii) definir a base de cálculo, o fato gerador e contribuintes responsáveis pelo recolhimento do tributo; nos termos do art. 146 da Constituição Federal de 1988 (CF/88)[6].

Logo, jamais poderia o Convênio ICMS nº 106/2017 definir os contribuintes, responsáveis e o local de arrecadação do ICMS, como fez expressamente em suas Cláusulas Terceira, Quarta e Quinta.

Em segundo lugar, há de se ressaltar que não há previsão constitucional de incidência do ICMS sobre as operações de softwares via download e/ou streaming no Art. 155, inciso II da Constituição Federal de 1988 (CF/88)[7].

Isto porque o núcleo material constitucional do ICMS não se relaciona com tais operações, sendo evidente que (i) nem o “download”, nem o “streaming” caracterizam, em termos fiscais, uma circulação efetiva de mercadorias (transferência de propriedade), apta a ensejar a incidência do tributo; e (ii) o software em si é um bem imaterial e intangível, não sendo possível identificá-lo, de forma objetiva, com uma mercadoria concreta.

Como bem leciona Roque Antônio Carrazza[8], os “softwares” por serem bens incorpóreos e fruto de trabalho intelectual, claramente, tipificam “modalidade de direito intelectual”[9]. Tais modalidades de direito intelectual possuem “a proteção jurídica dispensada aos direitos autorais”[10], sendo objeto de contratos de licença de uso, nos termos dos arts. 2º e 9º da Lei n. 9.609/1998 e arts. 7º e 28, inciso XII da Lei n. 9.610/98.

Por sua vez, os contratos de licença de uso, aplicáveis à grande maioria das operações de “softwares”, possibilitam ao usuário (licenciado) o direito de uso do produto criado pelo licenciador, sem, no entanto, ocorrer a transferência da propriedade intelectual dos direitos imateriais. Tal transferência de propriedade/titularidade do bem digital é necessária para caracterização do núcleo material do ICMS. Esse é o posicionamento é da doutrina especializada sobre o assunto[11].

Além disso, de acordo com os itens “1.04”, “1.05” e “1.09” da lista anexa à Lei Complementar n. 116/2003[12], as operações com softwares estão sujeitas ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN. De acordo com o art. 2º, inciso V da LC 87/96[13], tais operações somente poderão sofrer a incidência do ICMS quando houver previsão expressa na lei complementar (LC 116/2003), o que não se verifica em relação aos itens “1.04”, “1.05” e “1.09”.

Logo, caso seja autorizada a tributação do ICMS sobre as operações com softwares quando já há a tributação do ISSQN pelos itens “1.04”, “1.05” e “1.09” da lista anexa à LC n. 116/2003, haverá notória bitributação, o que é vedado em nosso ordenamento jurídico.

O entendimento aqui defendido é confirmado pela jurisprudência pátria mais recente[14], existindo apenas um precedente divergente analisado pelo STF em julgamento realizado quando da análise da medida cautelar na ADI n. 1945/MT, proposta em face de dispositivos normativos da Lei Estadual (MT) n. 7.098/98 do Mato Grosso. Tais dispositivos previam a incidência do ICMS na aquisição de softwares mediante transferência eletrônica de dados. Quanto a esses dispositivos específicos, vale ressaltar que a medida cautelar pleiteada pelo contribuinte foi indeferida, por decisão apertada[15], tendo em vista (i) a necessidade da própria Suprema Corte refletir com maior profundidade acerca do tema; e (ii) em razão, da referida norma estar vigente há mais de 12 (doze) anos. O processo aguarda ser incluído em pauta para julgamento definitivo do mérito da questão pelo Plenário do STF[16].

Mesmo que o tema esteja pendente de julgamento definitivo pelo STF, é possível verificar, em razão de todos os argumentos apresentados, que a Cláusula 1ª do Convênio ICMS n. 181/2015 é nitidamente inválida por afrontar os arts. 146 e 155, II da CF/88, eis que busca incluir indevidamente as operações com “softwares” no âmbito da incidência constitucional do ICMS.

Por fim, em relação a situação específica de transferência de dados de músicas e filmes, existem questionamentos acerca da extensão do disposto no artigo 150, inciso VI, alínea “e” da Constituição. Isto porque a Emenda Constitucional (EC) nº 75, de 2013, previu a imunidade de impostos sobre operações com “fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo obras musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros”. A imunidade mencionada se estende claramente aos bens digitais que contenham tais conteúdos, não sendo possível a incidência do ICMS.

Portanto, com todo o respeito ao “mumus” conferido ao CONFAZ, por mais louvável que seja a finalidade de instituir uma determinada tributação, não se pode permitir a edição de normas ao arrepio do que restou estabelecido pela Constituição Federal de 1988, sob pena de se estar ferindo o Estado Democrático de Direito, bem como o princípio da segurança jurídica que se relaciona, em sua essência, ao princípio da confiança legítima entre Estado e contribuintes.

Diante de tal situação, uma solução alternativa para possibilitar a incidência de ICMS sobre as operações com “software” via “download” e “streaming”, de modo a combater a queda de arrecadação fiscal enfrentada atualmente pelos Estados e Distrito Federal, seria a edição de uma Emenda Constitucional pelo Congresso Nacional que permitisse expressamente tal incidência. Inclusive, tal situação já ocorreu anteriormente de modo semelhante em relação ao “ICMS-Importação”, introduzido pela Emenda Constitucional n. 33, de 11 de dezembro de 2001, a qual acrescentou a alínea “a” ao inciso IX, do §2o do art. 155 da Constituição Federal.

Contudo, até que seja editada a referida Emenda Constitucional, espera-se que tais balizas sejam observadas pelas autoridades administrativas no exercício pleno de suas funções, de modo que nosso país possa superar desafios sem o atropelo do texto constitucional.

Fonte: Jota

[1] Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins.

[2] O Convênio autorizou os Estados a não exigir, total ou parcialmente, os débitos fiscais do ICMS, lançados ou não, inclusive juros e multas, relacionados com as operações previstas, ocorridas até a data de início da vigência deste convênio. Essa não exigência veda a restituição ou compensação de importâncias já pagas e deverá observar as condições estabelecidas na legislação estadual.

[3] Importante mencionar que o referido “benefício” possui caráter opcional, em substituição à sistemática normal de tributação, sendo vedada a apropriação de quaisquer outros créditos ou benefícios fiscais pelo contribuinte em caso de sua utilização.

[4] Decreto Estadual n. 45.490/2000 – RICMS/SP

[5] De igual modo, o Estado do Rio Grande do Sul editou o Decreto Estadual (RS) nº 53.121/2016 que instituiu o mesmo percentual para tais operações.

[6] Art. 146. Cabe à lei complementar: I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

[7] Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (…) II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.

[8] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. Ed. Malheiros Editores. 17ª Edição. p.190-192.

[9] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. Ed. Malheiros Editores. 17ª Edição. p.191.

[10] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. Ed. Malheiros Editores. 17ª Edição. p.192.

[11] BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 136, 137 e 138; CHIESA, Clélio. Competência para tributar operações com programas de computador (softwares). Revista Tributária e de Finanças Públicas, a. 9, n. 36, jan./fev. 2001, p. 41-53, p. 43, 51 e 52; GONÇALVES, Renato Lacerda de Lima. ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação. In MACHADO, Rodrigo Brunelli. ISS na Lei Complementar nº 116/2003. São Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 143; REIS, Emerson Vieira. Não-incidência do ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 160, jan. 2009, p. 25-34, p. 27.

[12] Lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003. (…) 1.04 – Elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos eletrônicos. 1.05 – Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação. (…)1.09 – Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei no 12.485, de 12 de setembro de 2011, sujeita ao ICMS). (Incluído pela Lei Complementar nº 157, de 2016)

[13] Art. 2° O imposto incide sobre: (…) V – fornecimento de mercadorias com prestação de serviços sujeitos ao imposto sobre serviços, de competência dos Municípios, quando a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidência do imposto estadual.

[14] Nesse sentido, cumpre mencionar que a 2ª Vara de Fazenda Pública do Estado de São Paulo, ao analisar o Mandado de Segurança n. 1032928-66.2016.8.26.0053, proferiu decisão liminar afastando a aplicação dos Decretos Estaduais (SP) n. 61.522/15 e 61.791/16, tendo em vista a violação ao princípio da legalidade tributária, e da bitributação sobre o mesmo fato gerador, por verificar que tais operações estão sujeitas ao ISS. Destaca-se que a referida decisão restou mantida integralmente pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). No mesmo sentido, na Ação Ordinária n. 1160124279-5 ajuizada pelo Sindicato das Empresas de Informática do Rio Grande do Sul (Seprorgs) com o intuito de afastar a incidência de ICMS nas operações com softwares e demais arquivos eletrônicos disponibilizados por qualquer meio, foi proferida decisão liminar com fundamentação jurídica idêntica àquela adotada em São Paulo, no sentido de que a legislação estadual fere os princípios da competência e legalidade e que estaria configurada a bitributação, uma vez que incide ISS, exigido pelos entes municipais, sobre o mesmo fato gerador. Ainda, vale ressaltar que o Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento dos Recursos Extraordinários nºs 176.626/SP[14] e 199.464/SP[14], firmou posicionamento (i) pela impossibilidade de caracterização do software como mercadoria, em razão de se tratar de bem intangível, sendo possível a tributação somente de seu suporte físico (mídias); e (ii) pela não incidência do ICMS sobre o licenciamento ou cessão de direito de uso do software, tendo em vista inexistência de circulação efetiva de mercadoria.

[15] À época do julgamento da medida liminar, os Ministros Octavio Galotti (aposentado), Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio, Celso de Mello, votaram pelo deferimento da liminar, enquanto que os Ministros Nelson Jobim (aposentado), Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Eros Grau (aposentado), Ayres Britto (aposentado) e Cezar Peluso (aposentado) votaram pelo indeferimento.

[16] Além da ADI mencionada acima, foi ajuizada perante o STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5576/SP pela Confederação Nacional de Serviços (CNS), com intuito de ver reconhecida a inconstitucionalidade do Decreto Estadual (SP) n. 61.791/16 diante da criação de bitributação e nova hipótese de incidência do imposto estadual.

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